Qual a relação entre o TDAH e a procrastinação?

Qual a relação entre o TDAH e a procrastinação?

A procrastinação no TDAH não é fruto de preguiça ou má vontade, mas de um padrão neurocognitivo específico, que demanda intervenções direcionadas.


Imagine um estudante universitário que constantemente deixa para última hora os trabalhos acadêmicos, ou um profissional talentoso que é reiteradamente criticado por perder prazos. Apesar da inteligência e boa intenção, ambos são rotulados como “preguiçosos” ou “desorganizados”. Mas e se o problema for algo mais complexo, como o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH)?

O objetivo deste artigo é investigar como os sintomas centrais do TDAH, especialmente os déficits nas funções executivas, estão diretamente relacionados ao comportamento procrastinatório.

Com base em dados empíricos e teóricos, exploraremos como a desatenção, a impulsividade e a dificuldade de foco têm um papel central na evitação de tarefas e no adiamento crônico. O artigo também apresenta abordagens psicoterapêuticas eficazes para o manejo dessa associação, oferecendo um recurso prático para estudantes, profissionais da saúde mental e indivíduos interessados em soluções fundamentadas na psicoterapia baseada em evidências.


O TDAH e suas manifestações clínicas

O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) é uma condição neuropsiquiátrica caracterizada por um padrão persistente de desatenção, hiperatividade e impulsividade.

Segundo o DSM-5 (2014), esses sintomas devem estar presentes desde a infância, causar prejuízo significativo em pelo menos dois contextos (como escola, trabalho ou casa) e não serem melhor explicados por outro transtorno mental.

  • A desatenção manifesta-se por dificuldades em manter o foco, cometer erros por descuido e não seguir instruções completas;
  • Já a hiperatividade envolve inquietação, fala excessiva e dificuldade em permanecer parado;
  • A impulsividade se revela na dificuldade de esperar a vez, interromper os outros e agir sem pensar nas consequências.

Esses sintomas impactam diretamente a capacidade de planejamento e organização, componentes essenciais das funções executivas.

Não é incomum que pacientes com TDAH relatem experiências de frustração e críticas ao longo da vida, muitas vezes rotulados injustamente como preguiçosos ou desinteressados. Na prática clínica, frequentemente observo adultos com histórico de múltiplos empregos, dificuldades acadêmicas e problemas em relacionamentos interpessoais — todos relacionados a dificuldades de autorregulação.

Estudos longitudinais demonstram que, sem intervenção adequada, os sintomas do TDAH persistem na idade adulta em até 60% dos casos (Fisher & O’Donohue, 2006). A manutenção desses sintomas contribui para o surgimento de comportamentos desadaptativos, como o comportamento procrastinador crônico, que discutiremos em seguida.


O comportamento procrastinador e suas causas psicológicas

A procrastinação é definida como o atraso voluntário, mas disfuncional, de tarefas planejadas, apesar de sabermos que esse adiamento pode trazer consequências negativas.

Trata-se de um fenômeno multifacetado, influenciado por fatores cognitivos, emocionais e motivacionais. No caso do TDAH, a procrastinação é frequentemente associada à disfunção executiva, mas é também alimentada por emoções negativas, como ansiedade e culpa.

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Você já se perguntou por que algumas pessoas simplesmente não conseguem começar uma tarefa, mesmo sabendo que precisam? Essa barreira inicial é especialmente comum em indivíduos com TDAH. Eles muitas vezes relatam uma “paralisia” frente a tarefas complexas ou monótonas.

A dificuldade de iniciar e concluir atividades está diretamente relacionada a déficits em planejamento, organização e gerenciamento do tempo.

Além disso, estudos indicam que o comportamento procrastinador está ligado a estratégias de enfrentamento evitativas. Em vez de lidar com uma tarefa difícil, o indivíduo opta por atividades mais prazerosas ou menos exigentes. Essa evitação de tarefas pode se tornar um ciclo vicioso de culpa, baixa autoestima e nova procrastinação.

Portanto, embora todos possamos procrastinar ocasionalmente, há uma diferença fundamental entre a procrastinação esporádica e o adiamento crônico típico de quem possui TDAH. Essa distinção é essencial para o diagnóstico e o tratamento eficazes, como veremos adiante.


Como a disfunção executiva no TDAH contribui para a procrastinação

A disfunção executiva é um dos principais componentes do TDAH e refere-se a um conjunto de habilidades cognitivas que permitem ao indivíduo planejar, organizar, iniciar e monitorar tarefas. Segundo Barkley (2011), essas funções são mediadas pelo córtex pré-frontal, região que apresenta menor atividade em pessoas com TDAH, comprometendo a capacidade de autorregulação.

Mas o que exatamente são funções executivas e como sua falha leva ao comportamento procrastinador? As funções executivas incluem habilidades como inibição de impulsos, memória de trabalho, controle emocional, planejamento e flexibilidade cognitiva.

Quando essas capacidades estão prejudicadas, tarefas simples do cotidiano, como responder a um e-mail ou pagar uma conta, tornam-se obstáculos.

Na prática clínica, observo frequentemente relatos como: “Eu sabia o que tinha que fazer, mas simplesmente não consegui começar” ou “Quando percebi, já tinha passado o prazo”. Esses relatos ilustram o impacto direto da disfunção executiva no atraso na execução de tarefas.

A impulsividade e a falta de organização agravam ainda mais esse quadro, criando um ciclo constante de adiamento crônico.

Pesquisas como as reunidas pela APS (2018) mostram que intervenções que visam melhorar as funções executivas — como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e o Treinamento em Habilidades de Organização e Planejamento — têm efeitos positivos significativos na redução da procrastinação em indivíduos com TDAH.

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Diferenças entre a procrastinação comum e a associada ao TDAH

Embora a procrastinação seja um comportamento amplamente distribuído na população geral, ela assume características qualitativamente diferentes quando associada ao TDAH:

  • Na população geral o adiamento costuma estar ligado à falta de interesse, perfeccionismo ou desorganização momentânea;
  • No TDAH ele se manifesta como parte de um padrão persistente de disfunção executiva.

Você consegue identificar quando o adiamento deixa de ser ocasional e passa a ser um obstáculo diário? Essa distinção é essencial para compreender a gravidade do problema. A procrastinação típica é resolvida com organização e autodisciplina. Já a procrastinação no TDAH exige intervenção clínica especializada.

Pessoas com TDAH geralmente descrevem a procrastinação como “fora de controle”. Ela não é causada por preguiça, mas sim por dificuldades estruturais de funcionamento cerebral. Estudos indicam que cerca de 80% dos adultos com TDAH relatam procrastinação crônica, enquanto na população geral essa taxa gira em torno de 20% (Moreira & Araújo, 2021).

Além disso, o impacto funcional também difere. No TDAH, o comportamento procrastinador compromete significativamente áreas como desempenho acadêmico, vida profissional e relacionamentos interpessoais. Isso reforça a importância do diagnóstico diferencial e do uso de estratégias específicas baseadas em evidências para esse público.


Intervenções baseadas em evidências para TDAH e procrastinação

Ao abordar o comportamento procrastinador em pessoas com TDAH, é fundamental que as intervenções psicoterapêuticas se baseiem em evidências empíricas robustas.

As diretrizes da prática psicoterapêutica baseada em evidências recomendam o uso de terapias estruturadas, como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), especialmente adaptadas às necessidades desse público (APS, 2018).

A TCC aplicada ao TDAH tem como foco o desenvolvimento de habilidades práticas de organização, planejamento e regulação emocional. Estratégias como o uso de agendas visuais, listas de tarefas, divisão de grandes objetivos em etapas menores e técnicas de recompensa têm mostrado reduzir o comportamento procrastinador.

Essas abordagens atuam diretamente sobre a disfunção executiva, fortalecendo a capacidade de iniciar e sustentar tarefas até sua conclusão.

Além da TCC, outras intervenções demonstraram eficácia, como o Treinamento em Habilidades de Funcionamento Executivo (THFE), o Coaching Cognitivo e abordagens baseadas em Mindfulness. Estas últimas auxiliam na regulação emocional e no aumento da atenção plena — fatores cruciais para conter a impulsividade e o adiamento crônico.

Cabe destacar ainda o papel complementar da farmacoterapia. Estimulantes como metilfenidato e anfetaminas têm efeitos comprovados na melhora da atenção e redução da impulsividade. Em muitos casos, a combinação entre medicação e psicoterapia potencializa os resultados.

Contudo, é essencial que a escolha do tratamento ocorra de forma compartilhada entre paciente e profissional, respeitando valores, preferências e contexto de vida (APA, 2021).

Na prática clínica, tive a oportunidade de acompanhar um paciente adulto com TDAH e histórico de procrastinação severa. Por meio da TCC, criamos juntos um sistema de monitoramento semanal de metas, com reforço positivo imediato para tarefas iniciadas no prazo. Após três meses, a pontualidade e a autoestima do paciente melhoraram visivelmente — um reflexo claro da eficácia do tratamento baseado em evidências.


Palavras finais

Ao longo deste artigo, exploramos como o TDAH influencia diretamente o comportamento procrastinatório, sobretudo por meio das disfunções executivas. A dificuldade de foco, a desatenção, a impulsividade e a falta de organização são fatores que, juntos, intensificam o adiamento crônico de tarefas, dificultando a vida acadêmica, profissional e pessoal dos indivíduos afetados.

Fica evidente que a procrastinação no TDAH não é fruto de preguiça ou má vontade, mas de um padrão neurocognitivo específico, que demanda intervenções direcionadas. A diferenciação entre procrastinação comum e aquela associada ao transtorno é fundamental para o desenvolvimento de estratégias adequadas, evitando rótulos injustos e promovendo a empatia.

As intervenções psicoterapêuticas baseadas em evidências, como a TCC, o treinamento em funções executivas e o mindfulness, aliadas à farmacoterapia quando necessário, oferecem um arsenal de ferramentas eficazes para o manejo dessa condição.

É possível transformar a realidade de quem sofre com TDAH e procrastinação — desde que haja acesso a tratamento qualificado, comprometimento psicoterapêutico e apoio contínuo. Que este artigo sirva como ponto de partida para a construção de rotinas mais organizadas, funcionais e alinhadas aos objetivos de cada pessoa.


Referências

  • AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
  • AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Decision-Making Within Evidence-Based Practice in Psychology. Washington: APA, 2021.
  • AUSTRALIAN PSYCHOLOGICAL SOCIETY. Evidence-based psychological interventions in the treatment of mental disorders: A literature review. 4th ed. 2018.
  • FISHER, J. E.; O’DONOHUE, W. T. (Orgs.). Practitioner’s guide to evidence-based psychotherapy. New York: Springer, 2006.
  • MOREIRA, M. B.; ARAÚJO, T. S. de. Prática psicológica baseada em evidências: definição e exemplos. 1ª ed. Brasília: Instituto Walden4, 2021.

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