O custo de uma sessão de psicoterapia, tal como recomendado pela Tabela de Referência do Conselho Federal de Psicologia (CFP), tornou-se um ponto de tensão entre o ideal ético-profissional e a realidade socioeconômica brasileira. Em 2024, o valor sugerido girava em torno de R$ 309,75 por sessão individual de 50 minutos.
No entanto, segundo dados recentes do IBGE, a renda média mensal do trabalhador brasileiro é inferior a R$ 3.378, com grande parte da população ganhando menos de dois salários mínimos.
A matemática é simples, mas os impactos são complexos: para uma pessoa de renda média baixa, realizar uma psicoterapia semanal por um mês comprometeria entre 20% e 40% de seu orçamento. Isso sem considerar despesas básicas como alimentação, moradia, transporte e saúde.
Em outras palavras, acessar cuidados psicológicos de qualidade ainda é um privilégio de poucos — e não um direito universal, como deveria ser.
Psicoterapia, saúde mental e responsabilidade coletiva
A saúde mental é um direito humano fundamental, conforme reconhecido por organismos internacionais e pelo próprio Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda assim, milhões de brasileiros enfrentam barreiras intransponíveis para alcançar esse cuidado, sobretudo financeiras.
O modelo atual de remuneração dos psicólogos, por sua vez, também penaliza os profissionais, que muitas vezes precisam escolher entre:
- Seguir a tabela do CFP — sem adesão suficiente ou;
- Ajustar seus preços para um valor mais acessível, correndo o risco de precarizar sua própria prática e saúde financeira.
Como, então, garantir equidade no acesso e sustentabilidade na prática clínica?
Custo da sessão versus realidade orçamentária
A Tabela de Referência do CFP é um marco de valorização profissional, mas encontra baixa adesão na prática. Isso ocorre porque, na maioria das regiões do Brasil, a realidade econômica da população não permite que a maioria dos pacientes pague o valor integral sugerido.
Para ilustrar a desproporção, vejamos uma simulação prática: uma pessoa que recebe R$ 2.700,00 líquidos ao mês e decide fazer quatro sessões de psicoterapia mensalmente, a R$ 260,00 cada, desembolsaria R$ 1.040,00 — o equivalente a 38% da sua renda.
Essa porcentagem excede os limites recomendados de gastos com saúde segundo a Organização Mundial da Saúde, que sugere que o total com esse item não ultrapasse 10% do orçamento familiar. A escolha entre pagar o aluguel ou continuar o processo psicoterapêutico torna-se, portanto, inevitável para muitos.
Leia também:
Outro exemplo:
Elemento | Valor médio estimado (2024) |
---|---|
Tabela CFP por sessão | R$ 309,75 |
4 sessões/mês | R$ 1.239,00 |
Renda média mensal (IBGE) | R$ 3.378,00 |
% do orçamento comprometido | ~36% |
Além disso, é preciso considerar o impacto das despesas básicas de subsistência. Segundo o DIEESE, o custo da cesta básica em capitais como São Paulo e Florianópolis supera os R$ 800,00. Aluguel, transporte, contas fixas e alimentação consomem quase toda a renda de quem está fora do 1º quartil de renda.
Muitos psicólogos, em resposta a essa realidade oferecem “valores sociais” ou absorvem parte dos custos por empatia — uma solução solidária, porém individualizada e insustentável a longo prazo, gerando sobrecarga emocional e financeira para o psicólogo.
A discrepância entre valor recomendado e capacidade de pagamento empurra os pacientes para a informalidade ou para atendimentos pontuais. Isso compromete a continuidade da psicoterapia e reduz drasticamente seus efeitos.
Como equilibrar essa equação? Essa pergunta convida o leitor a refletir sobre como praticamos, acessamos e organizamos a saúde mental no Brasil.
Impactos no acesso à saúde mental e na inclusão social
Quando o custo da psicoterapia ultrapassa a possibilidade orçamentária de grande parte da população, produz-se uma barreira invisível — e violenta. Milhões de brasileiros que sofrem com ansiedade, depressão, luto, burnout ou violência doméstica são privados de um recurso fundamental de cuidado porque o valor da sessão está fora de seu alcance.
Essa exclusão reforça desigualdades históricas, aprofundando o sofrimento psíquico das camadas mais vulneráveis da sociedade.
A acessibilidade em saúde mental não pode depender apenas de vontade individual ou de caridade. Em meus atendimentos clínicos, acompanhei uma jovem mulher, negra e periférica, que levou seis meses para conseguir uma psicóloga que atendesse por valor social — e mais quatro para sentir segurança no vínculo terapêutico.
Esse atraso impactou diretamente sua trajetória profissional, acadêmica e afetiva. O sofrimento psíquico não espera o orçamento melhorar: ele se instala, se agrava e, muitas vezes, se cronifica.
O impacto da inacessibilidade também reverbera entre os próprios psicólogos. A pressão para reduzir os valores, equilibrar o desejo de acolher e manter o consultório financeiramente viável pode gerar frustração, exaustão e desmotivação profissional.
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Muitos iniciantes sentem-se desvalorizados ao receber valores muito abaixo da tabela, enquanto psicólogos experientes relatam dificuldades em manter sua clientela com honorários sustentáveis.
Em consultório, já acompanhei jovens psicoterapeutas que relataram ansiedade e culpa ao manter seus preços de tabela. “Sinto que estou vendendo saúde mental para quem pode pagar, enquanto outros adoecem à margem”, disse uma profissional recém-formada. Essas narrativas revelam um ponto crítico: a crise de valores e de sustentabilidade do modelo atual.
A exclusão da psicoterapia como um direito real compromete o projeto de inclusão social. Se a escuta profissional e a possibilidade de elaborar a dor forem acessíveis apenas à elite, perpetua-se a lógica de que saúde mental é um luxo — quando, na verdade, deveria ser um bem comum.
Que estratégias o Estado, os conselhos profissionais e a sociedade podem adotar para garantir que a escuta terapêutica não seja privilégio, mas política pública?
O papel das políticas públicas e dos planos de saúde
O SUS é, em teoria, o maior provedor de saúde mental no Brasil. Contudo, enfrenta limitações estruturais severas, como falta de profissionais, filas extensas e escassez de serviços continuados. A Estratégia Saúde da Família (ESF) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são fundamentais, mas não dão conta da complexidade e da demanda crescente.
Já os planos de saúde — que deveriam atuar como mediadores entre o paciente e o profissional — adotam práticas que desvalorizam os psicólogos e dificultam o acesso dos usuários.
Muitos convênios impõem um número reduzido de sessões por ano, remuneram valores que chegam a ser 80% inferiores ao sugerido pelo CFP, e ainda criam barreiras administrativas com burocracias contratuais. Isso gera desistência por parte dos profissionais e baixa qualidade na rede credenciada.
Há um hiato de regulação e incentivo. O Estado precisa intervir, não apenas financiando serviços, mas também regulando o mercado de saúde suplementar, valorizando os psicólogos e garantindo continuidade e qualidade no cuidado.
Você já se perguntou por que uma psicoterapia de qualidade não pode ser um direito tão garantido quanto uma consulta clínica ou um medicamento? Essa pergunta nos leva à próxima seção.
Diretrizes para uma remuneração justa e sustentável
A sustentabilidade profissional é um requisito ético e prático da psicoterapia. Nenhum psicólogo deve ser forçado a sacrificar sua estabilidade financeira para cumprir uma missão social.
Ao mesmo tempo, o compromisso com a acessibilidade exige soluções que vão além da iniciativa individual. A resposta, portanto, deve ser coletiva, sistêmica e estruturada em diretrizes claras.
Três princípios devem orientar essa política: equidade, viabilidade e valorização:
- Equidade: reconhecer a desigualdade econômica e oferecer meios de acesso diferenciados, como atendimento escalonado por renda;
- Viabilidade: garantir que os valores cobrados sejam compatíveis com o custo de vida do terapeuta;
- Valorização: assegurar que a formação, supervisão e constante atualização do profissional sejam reconhecidas e remuneradas adequadamente.
Diversas experiências mostram que é possível conciliar responsabilidade social e sustentabilidade profissional. Modelos com faixas de cobrança baseadas na renda familiar do paciente, como em clínicas-escola e projetos de extensão universitária, permitem ampliar o acesso sem penalizar o profissional.
Outro exemplo promissor são os atendimentos por cooperativas de psicólogos, que compartilham estrutura e redistribuem ganhos, permitindo ao terapeuta reduzir o valor sem abrir mão da viabilidade financeira.
A valorização profissional não se opõe à acessibilidade; ao contrário, ela a fortalece. Quando o psicólogo é remunerado de forma adequada, pode dedicar-se com mais estabilidade, investir em capacitação e manter-se emocionalmente disponível.
Portanto, é hora de superar a dicotomia entre cobrar bem e atender quem precisa — e construir políticas e práticas que unam essas duas dimensões.
Você já pensou em como os valores sociais podem ser institucionalizados como política pública e não apenas como escolha pessoal? Isso nos leva à discussão seguinte.
Modelos inovadores de atendimento e inclusão
A inovação em saúde mental não depende apenas de tecnologia, mas de redes e formatos mais democráticos. Diversas práticas clínicas têm demonstrado formas eficazes de expandir o acesso à psicoterapia:
- Clínicas populares de Psicologia: espaços com valores abaixo do mercado, financiados parcialmente por editais ou parcerias institucionais;
- Psicoterapia online com triagem automatizada: permite maior alcance territorial, especialmente em zonas rurais ou remotas;
- Cooperativas de psicólogos: modelo horizontal que compartilha recursos, custos e pacientes, promovendo sustentabilidade e inclusão;
- Grupos psicoterapêuticos e oficinas comunitárias: estratégias custo-efetivas e validadas cientificamente para acolhimento e intervenção.
Esses formatos requerem apoio e reconhecimento legal. Políticas públicas podem fomentar essas iniciativas por meio de incentivos fiscais, linhas de crédito e editais de financiamento — transformando boas práticas em políticas estruturantes.
Como seria um Brasil onde toda cidade tivesse um centro comunitário de saúde mental, mantido por parcerias entre Estado, universidades e cooperativas? Essa pergunta projeta o futuro que queremos construir.
Propostas de políticas públicas para ampliar o acesso
A transformação da psicoterapia em política de inclusão social depende de uma mudança no paradigma de financiamento da saúde mental. Abaixo, proponho algumas diretrizes de políticas públicas, alinhadas às evidências e às melhores práticas internacionais:
Proposta | Objetivo |
---|---|
Tabela CFP vinculada à realidade socioeconômica | Flexibilizar recomendações conforme regiões e contextos |
Subsídios públicos à psicoterapia | Criar vouchers ou créditos de tratamento via SUS/municipal |
Parcerias com universidades | Expandir clínicas-escola e teleatendimentos supervisionados |
Regulação de planos de saúde | Elevar repasse por sessão e garantir liberdade terapêutica |
Incentivo a cooperativas | Apoiar modelos associativos de psicólogos |
Inserção da saúde mental no orçamento familiar | Criar campanhas públicas sobre investimento em psicoterapia |
Tais medidas têm precedentes internacionais bem-sucedidos. Na Austrália, por exemplo, o governo subsidia até 20 sessões de psicoterapia por ano para qualquer cidadão, dentro do programa “Better Access”.
O Reino Unido, por sua vez, implementou o IAPT (Improving Access to Psychological Therapies), com investimentos massivos em atendimento psicológico gratuito e baseado em evidências.
E no Brasil? Como seria ver o cuidado psicológico tratado com o mesmo rigor e financiamento que a saúde bucal ou a vacinação?
Palavras finais
A psicoterapia precisa deixar de ser um privilégio para tornar-se um direito real.
A discrepância entre a Tabela CFP e a renda média do brasileiro é mais do que um problema técnico — é um reflexo de desigualdades estruturais.
Para que a psicoterapia cumpra seu papel social e psicoterapêutico, é necessário repensar seus fundamentos econômicos e políticos. Isso envolve, ao mesmo tempo, reconhecer o valor do trabalho do psicólogo e garantir que nenhum cidadão deixe de receber ajuda por falta de dinheiro.
Há soluções viáveis, baseadas em evidências e já testadas em diversos contextos. Desde políticas de copagamento e subsídio cruzado até modelos colaborativos e teleatendimentos, o que falta, muitas vezes, é vontade política e articulação entre setores.
O momento é propício: nunca se falou tanto em saúde mental, e nunca foi tão urgente agir com coragem e estratégia.
Cabe a nós, enquanto profissionais, gestores, usuários e cidadãos, sustentar esse debate. Precisamos demandar do Estado, do CFP, dos planos de saúde e das universidades um compromisso mais firme com a inclusão, a acessibilidade e a valorização da psicoterapia.
E se todos os brasileiros pudessem experimentar o cuidado terapêutico como parte da vida cotidiana — e não como um luxo? Essa é a pergunta que deixo como convite à reflexão e à ação.
Referências (formato ABNT)
- ANS. Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde 2022. Agência Nacional de Saúde Suplementar, 2022.
- CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Tabela de Referência de Honorários 2024. Brasília, 2024.
- IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rendimento médio mensal – 2024.
- DIEESE. Custo da Cesta Básica – Relatório Anual 2023. São Paulo, 2023.
- APA. Decision-Making Within Evidence-Based Practice in Psychology. American Psychological Association, 2021.
- MOREIRA, Márcio Borges; ARAÚJO, Teresa Salim de. Prática Psicológica Baseada em Evidências. Instituto Walden4, 2021.
- AUSTRALIAN PSYCHOLOGICAL SOCIETY. Evidence-Based Psychological Interventions. APS, 2018.
- CPA. Report of the Task Force on Evidence-Based Practice of Psychological Treatments. Canadian Psychological Association, 2012.
- FISHER, Jane E.; O’DONOHUE, William T. Practitioner’s Guide to Evidence-Based Psychotherapy. Springer, 2006.
- OMS. Classificação Internacional de Doenças – CID-11: Guia de Referência. Organização Mundial da Saúde, 2024.
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