As “mentiras” contadas no curso de Psicologia

As mentiras contadas no curso de Psicologia.

Crítica à formação em Psicologia: revela mitos, exalta a PBE e propõe uma prática ética, crítica e baseada em evidências.


Você já se perguntou se tudo o que aprendeu na graduação em Psicologia é verdade? Ou melhor: se é útil, ético e eficaz diante das demandas reais que encontramos na prática clínica, hospitalar, organizacional ou educacional?

Muitos estudantes e profissionais descobrem, com o tempo, que parte do conteúdo acadêmico é composto por falsas premissas, distorções conceituais, ou até mesmo por práticas sem sustentação empírica.

Essas “mentiras” — no sentido de enganos ou omissões — comprometem a qualidade da atuação profissional e, mais grave ainda, afetar negativamente a vida das pessoas atendidas.

A proposta deste artigo é revelar algumas dessas inverdades frequentemente ensinadas nos cursos de Psicologia, promovendo uma leitura crítica da formação tradicional.

Em tempos de acesso facilitado à informação científica, é essencial que estudantes e profissionais desenvolvam o hábito de questionar, confrontar e atualizar seus referenciais. Só assim será possível construir uma prática ética, coerente com os avanços do conhecimento e sensível às complexidades humanas.


“Todas as abordagens são igualmente eficazes”

No início da graduação, é comum ouvirmos que todas as abordagens psicológicas têm valor e que cabe ao Psicólogo escolher aquela com a qual mais se identifica. Embora essa postura valorize a diversidade teórica, ela mascara uma farsa: nem todas as abordagens têm o mesmo nível de eficácia comprovada.

A formação que legitima qualquer prática como “válida” acaba incentivando o uso indiscriminado de técnicas, muitas vezes sem respaldo científico.

Um exemplo é o conteúdo do artigo “A psicoterapia não deve ser prática exclusiva de psicólogo”, que levanta uma discussão legítima, mas frequentemente explorada sem considerar as implicações éticas e legais da atuação psicológica.

Estudos sistemáticos mostram que intervenções como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) e a Terapia Dialética Comportamental (DBT) apresentam eficácia robusta para uma ampla gama de transtornos mentais (APA, 2021; Australian Psychological Society, 2018)​.

Por outro lado, há modelos cuja eficácia é modesta, limitada a nichos específicos, ou simplesmente ausente.

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Além disso, o argumento do “ecletismo” esconde autoengano e racionalizações: o uso de técnicas desconectadas entre si, sem coerência teórica ou base empírica, prejudica a evolução do paciente. Isso nos leva a perguntar: em que medida nossas escolhas clínicas estão baseadas em evidências — e não apenas em preferências pessoais ou modismos institucionais?

Consequentemente, repetir a lorota de que todas as abordagens “funcionam” igualmente é negligenciar o compromisso ético com a efetividade do tratamento e a segurança do paciente.


“Diagnosticar é rotular”

Outra distorção comum durante a formação é a ideia de que os diagnósticos são reducionistas e estigmatizantes, equivalendo a “rotular” pessoas. Embora esse pensamento seja compreensível, especialmente em contextos críticos da psiquiatria, ele também ignora nuances importantes.

Em realidade, diagnósticos bem formulados são ferramentas clínicas essenciais. Eles auxiliam na escolha do tratamento mais eficaz, facilitam a comunicação entre profissionais e garantem acesso a políticas públicas e direitos (APA, 2013; OMS, 2024)​​. A simplificação de que “diagnosticar é patologizar” ignora que o sofrimento humano deve ser nomeado para ser tratado com precisão e compaixão.

Contudo, é verdade que os manuais diagnósticos — como o DSM-5 e a CID-11 — são mal utilizados se descontextualizados das características individuais, culturais e sociais do paciente. Por isso, é crucial formar profissionais que usem os sistemas classificatórios com criticidade, competência técnica e ética relacional.

Nesse sentido, vale refletir: será que estamos ensinando os futuros psicólogos a utilizar os diagnósticos como bússola clínica, ou estamos apenas alimentando o medo de “rotular” e, com isso, desinformando?

Desmistificar essa balela pode fortalecer práticas clínicas mais assertivas, empáticas e fundamentadas em critérios claros de decisão.


“O psicólogo deve ser totalmente neutro”

Uma das farsas mais difundidas nas salas de aula é a crença de que o psicólogo deve ser totalmente neutro, isento de valores e julgamentos. Embora a postura ética e a escuta empática sejam fundamentais, a ideia de neutralidade absoluta é um mito acadêmico que ignora a complexidade das relações humanas.

Em conteúdos de divulgação ampla, muitas vezes encontramos naturalizações de comportamentos que pediriam maior elaboração clínica. O artigo “Falar sozinho pode ser considerado uma doença mental?” é um exemplo de como temas delicados são tratados em tom de curiosidade, mas carecem de aprofundamento técnico e referencial.

Na prática clínica, todo encontro psicoterapêutico é atravessado por valores, crenças, normas culturais e posicionamentos morais — tanto do paciente quanto do psicólogo. Negar isso seria reforçar um autoengano.

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O desafio não é eliminar esses elementos, mas sim reconhecê-los, examiná-los criticamente e usá-los de forma responsável e transparente.

Por isso, um dos objetivos da formação deveria ser justamente ensinar o psicólogo a lidar com suas próprias implicações subjetivas e sociais na clínica, algo que exige autoconhecimento, supervisão qualificada e reflexividade constante.

A neutralidade, quando vendida como ideal absoluto, se torna uma racionalização que distancia o profissional de sua humanidade e da potência ética de seu trabalho.


“A psicoterapia deve seguir o fluxo do paciente”

Outra distorção recorrente — especialmente em disciplinas introdutórias — é a noção de que a psicoterapia não tem um plano definido, e que o processo deve “seguir o fluxo do paciente”. Essa concepção, embora romantizada, é perigosa quando desconsidera a importância da estrutura, dos objetivos psicoterapêuticos e da avaliação contínua.

A falta de critério na escolha de métodos leva o profissional a elaborar um modelo de atestado psicológico, sem discutir o contexto ético, jurídico e clínico — algo que deve ser profundamente debatido na formação.

Na Psicoterapia Baseada em Evidências (PBE), os objetivos clínicos são co-construídos em parceria com o paciente e monitorados sistematicamente. Isso não significa rigidez, mas sim clareza de propósitos. Direcionamento não é imposição, mas sim um acordo terapêutico orientado pelo sofrimento apresentado e pelas metas desejadas (Moreira & Araújo, 2021)​.

Quando a formação omite essa dimensão, contribui para a perpetuação de práticas desorganizadas, ineficazes ou até prejudiciais. Quantas vezes já ouvimos colegas dizerem que a sessão “foi boa” apenas porque o paciente falou muito, mesmo sem um plano psicoterapêutico claro?

Isso revela o quanto a falta de estrutura é confundida com acolhimento, quando na verdade é sinal de despreparo técnico. Assim, é urgente superar a balela da psicoterapia como “espaço livre de direção” e ensinar os futuros profissionais a aliarem escuta afetiva com planejamento eficaz.


“A prática começa depois da formado”

Uma de outras lorotas contadas durante a formação é a de que a prática psicológica começa apenas após o diploma. Essa crença ignora o papel crucial da graduação como espaço de iniciação à realidade profissional. A ausência de articulação entre teoria e prática leva os alunos a formarem-se inseguros, despreparados e desconectados das demandas reais da profissão.

Na verdade, o estágio supervisionado deveria ser um território fértil para experimentar abordagens baseadas em evidências, testar hipóteses clínicas, aprender a formular casos e utilizar instrumentos psicométricos com rigor técnico.

Porém, o que vemos, com frequência, é uma formação marcada por improviso, informalidade e uma supervisão pouco estruturada — baseada, muitas vezes, em mitos acadêmicos ou na intuição do orientador.

Essa negligência com a prática também alimenta racionalizações defensivas, como “cada paciente é único demais para caber em protocolos” — esquecendo que individualizar o tratamento não é oposto a utilizar evidências, mas sim parte essencial do processo decisório fundamentado (APA, 2021; Dozois & Mikail, 2012)​.

Portanto, precisamos transformar os estágios em verdadeiros laboratórios de pensamento crítico, ética relacional e competência técnica, rompendo com a falsa premissa de que o “mundo real” começa apenas após o diploma.


A naturalização da pseudociência na formação

Um dos enganos mais perigosos ensinados — ainda que de forma implícita — é a naturalização da pseudociência como se fosse psicologia. Isso ocorre quando teorias não testadas, intervenções ineficazes ou crenças populares são ensinadas sem o devido escrutínio crítico, muitas vezes sob a justificativa de “diversidade epistemológica”.

Uma abordagem tende a ser pseudocientífica quando:

CritérioSinal de alerta
Não é testável ou refutávelParte de premissas metafísicas (ex: karma, vidas passadas)
Não possui estudos revisados por paresBaseia-se apenas em relatos ou livros de autoajuda
Apela à autoridade e à tradiçãoArgumenta com “sempre funcionou” ou “é milenar”
Não mostra eficácia superior ao placeboNão apresenta dados comparativos com outros tratamentos
Utiliza linguagem vaga ou metafóricaTermos como “energia”, “vibração” ou “memória celular”

Esse tipo de ensino expõe os alunos a práticas baseadas em balelas, racionalizações e mitos acadêmicos travestidos de saber psicoterapêutico. São exemplos comuns:

  1. Constelação familiar: baseia-se em pressupostos místicos, como a influência dos “campos morfogenéticos” ou de “energias familiares transgeracionais”, sem qualquer validação empírica.
  2. Florais de Bach: supõe-se que essências florais contenham “energia vibracional” capaz de curar emoções, sem princípios ativos mensuráveis.
  3. Programação neurolinguística (PNL): defende que padrões de linguagem podem reprogramar a mente e os comportamentos, com base em metáforas neurológicas não comprovadas.

Embora muitas dessas práticas sejam utilizadas com boa intenção, seu uso sem esclarecimento sobre suas limitações configura uma violação do princípio da honestidade científica e do dever ético de não causar dano (APA, 2006; CPA, 2012; APS, 2018)​​​.

Ensinar essas abordagens sem esclarecer suas limitações metodológicas configura desinformação. Pior: leva profissionais desavisados a oferecer tratamentos ineficazes ou até danosos. Isso fere diretamente o princípio da beneficência e o dever de agir com competência técnica.

Será que, ao ignorarmos esse problema, não estamos contribuindo para o autoengano institucional? É urgente que os currículos sejam reformulados para incluir disciplinas de epistemologia crítica, análise de qualidade de evidência e combate à pseudociência na psicologia — sem isso, a profissão corre o risco de deslegitimar-se aos olhos da sociedade.


A omissão da Psicologia baseada em evidências (PBE)

Talvez a distorção mais grave no ensino de psicologia seja a negligência com o paradigma da Psicologia baseada em evidências — uma abordagem que integra os melhores dados empíricos disponíveis, a expertise clínica e as preferências e valores do cliente (APA, 2006; 2021)​.

Durante o curso, raramente os estudantes aprendem a formular perguntas clínicas, buscar evidências em bases científicas confiáveis, ou avaliar a qualidade metodológica de um estudo. Em vez disso, se perdem em discussões teóricas desconectadas da realidade, ou em defesas apaixonadas por escolas como se fossem times de futebol.

Essa desconexão com a ciência contribui para a perpetuação de mitos acadêmicos, pseudociência e falsas promessas terapêuticas, como o uso indiscriminado de técnicas sem respaldo, ou a confiança cega na “intuição clínica”.

A consequência? Profissionais despreparados para lidar com casos complexos, ineficácia psicoterapêutica e risco ético para os pacientes.

Como ensinar ética profissional se não ensinamos a respeitar o princípio fundamental da beneficência? Como falar em responsabilidade social sem formar psicólogos capazes de usar ciência para reduzir sofrimento?

Tabela comparativa: abordagem baseada em evidências x pseudociência:

CritérioAbordagem baseada em evidênciasAbordagem pseudocientífica
Base teóricaClara, plausível, fundamentada na ciênciaVaga, mística ou baseada em crenças pessoais
TestabilidadePode ser testada e refutada empiricamenteNão é testável ou é protegida contra refutação
Evidência empíricaDocumentada em RCTs, revisões sistemáticasBaseada em relatos subjetivos ou anedotas
Presença em diretrizes clínicasRecomendadas por entidades como APA, NICE, OMSAusente de diretrizes reconhecidas internacionalmente
Clareza nos mecanismos de mudançaDefine como e por que a intervenção funcionaApela a “energias”, “memórias inconscientes” etc.
Segurança e eficáciaMonitorada e avaliada continuamenteSem controle de qualidade ou revisão crítica
Transparência com o clienteExplicita limitações, riscos e alternativasPromete cura ampla, rápida e sem contraindicações

A integração da PBE à formação não é uma opção — é uma urgência ética e política. A boa prática exige mais do que boas intenções: exige formação crítica, contínua e baseada em dados confiáveis.


Perguntas frequentes

Com prazer! Abaixo está uma Seção de Perguntas Frequentes (FAQ) especialmente elaborada para estudantes, recém-formados e profissionais da Psicologia, com foco em formação crítica, ética e baseada em evidências. Essa seção pode ser inserida como anexo final do artigo, ou usada em contextos didáticos e formativos.


Perguntas frequentes

  1. O que caracteriza uma abordagem como pseudociência na Psicologia?
    Uma abordagem é considerada pseudocientífica quando não é fundamentada em evidências empíricas confiáveis, não é testável de forma objetiva, e frequentemente apela a explicações vagas ou metafísicas.
  2. É antiético usar uma abordagem não comprovada, se eu acredito nela?
    Sim, se não houver clareza com o paciente sobre a falta de evidências científicas, isso configura violação do princípio da honestidade e da competência técnica.
  3. A Psicologia baseada em evidências exclui a subjetividade humana?
    De forma alguma. A PBE integra a melhor evidência científica com a expertise clínica e os valores do paciente. Ou seja: não exclui a subjetividade, mas a contextualiza dentro de um processo ético, técnico e responsivo às necessidades reais da pessoa.
  4. O que fazer se a universidade em que estudo ensina práticas sem comprovação científica?
    O primeiro passo é desenvolver senso crítico e buscar fontes externas confiáveis (artigos, diretrizes clínicas, revisões sistemáticas). É possível também levar o debate para espaços formais — como grupos de estudo, reuniões pedagógicas ou centros acadêmicos — e propor melhorias curriculares.
  5. Constelação familiar, PNL ou florais são proibidos pela Psicologia?
    O uso dessas abordagens em contexto clínico deve ser evitado, a não ser que o profissional esteja em outro papel (ex: coach, instrutor, espiritualista) — e, mesmo assim, deve deixar claro que não está atuando como psicólogo.
  6. É possível aliar abordagens humanistas ou existenciais com a PBE?
    Sim. A PBE não exclui abordagens filosóficas ou relacionais, desde que estas estejam abertas ao diálogo com evidências, adotem critérios de avaliação de resultados e sejam aplicadas de forma ética. O que se rejeita não é a filosofia, mas a prática sem critérios.
  7. O que fazer se eu já me formei e percebo que fui exposto a muitas “mentiras” na graduação?
    Isso é mais comum do que parece. O importante é começar um processo ativo de atualização profissional. Busque formações sérias, leia artigos científicos, participe de supervisões baseadas em evidências e mantenha uma postura humilde, crítica e aberta ao aprendizado contínuo.
  8. Existe espaço para espiritualidade ou cultura na psicologia baseada em evidências?
    Sim. A PBE reconhece a importância dos valores, da espiritualidade e da cultura como parte do contexto do paciente. O que se critica é o uso de práticas espirituais como se fossem intervenções psicoterapêuticas comprovadas, sem deixar isso claro para o cliente.
  9. Questionar o que aprendi na faculdade é desrespeitar meus professores?
    Não. É um ato de responsabilidade intelectual e ética. Questionar, investigar e buscar evidências atualizadas é sinal de maturidade profissional — e deve, inclusive, inspirar mudanças positivas nas instituições de ensino. A boa ciência se constrói com diálogo crítico, não com obediência cega.

Palavras finais

A formação em Psicologia precisa ser revisitada com coragem, humildade e compromisso com a verdade. Este artigo buscou revelar algumas das principais inverdades, distorções e simplificações que ainda povoam o imaginário acadêmico — desde o mito da neutralidade até a negligência com as evidências científicas.

Ao desmascarar essas “mentiras”, pretendo fortalecer a Psicologia. A crítica aqui é um ato de cuidado, um chamado à integridade, à lucidez e à responsabilidade. Precisamos de uma formação que estimule o pensamento independente, o rigor metodológico e a ética relacional — e não de uma que reproduza balelas, farsas e autoenganos travestidos de tradição.

Por fim, convido cada leitor — seja estudante, recém-formado ou profissional — a cultivar uma postura investigativa, ética e crítica. Que possamos abandonar o conforto das falsas premissas e abraçar o desafio de uma psicologia mais justa, mais humana e verdadeiramente transformadora.


Referências

  • AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Evidence-based practice in psychology. Washington, DC: APA, 2006.
  • AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. APA Clinical Practice Guideline for the Treatment of Depression Across Three Age Cohorts. Washington, DC: APA, 2021.
  • AUSTRALIAN PSYCHOLOGICAL SOCIETY. Evidence-based psychological interventions in the treatment of mental disorders: A literature review. 4. ed. Melbourne: APS, 2018.
  • DOZOIS, D. J. A.; MIKAIL, S. F. (Orgs.). Report of the CPA Task Force on Evidence-Based Practice of Psychological Treatments. Ottawa: Canadian Psychological Association, 2012.
  • MOREIRA, M. B.; ARAÚJO, T. S. (Orgs.). Prática psicológica baseada em evidências: definição e exemplos. Brasília: Instituto Walden4, 2021. Disponível em: http://www.walden4.com.br. Acesso em: 20 abr. 2025.
  • ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CID-11 – Classificação Internacional de Doenças: guia de referência. Genebra: OMS, 2024.

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